sexta-feira, 15 de maio de 2020

Ode à alegria, hino à vida


Para Beethoven e Schiller, com amor

I
Numa praça qualquer, num terreno indistinguível
Diante da beleza retumbante de uma obra de vocês
Uma criança, imóvel, contemplava a orquestra que se formava
Vocês superaram o inexorável, o absoluto da morte
Ensinaram um caminho lindo para tempos horríveis
Ofertaram um mapa para os perdidos
Um rumo para aqueles que se esqueceram 
Da humanidade que há neles próprios
Nessa confusão, um som luta para se distinguir.

II
A orquestra que começa solitária
adensa-se lentamente - nove, noventa, novecentos
No compasso da grandeza sinfônica
Sua música e sua poesia infinitas
Eram afronta à vida que corria rápida e indiferente na rua
Essa indiferença foi nos matando, sabes
Éramos muitos, somos bilhões, mas sozinhos
Presos em nossas individualidades e em nossos individualismos
Agora presos em nossas casas e isso é um privilégio.

III
Tempos duros e paradoxais
Em que abraçar e beijar soam como agressão
Em que amantes e amados vergam-se 
Sem relutância à distância necessária para haver um futuro de abraços
O mundo queima em divergência, medo e incerteza
Somos novamente peste, pestilência e pesticida
Somos tudo e nada num turbilhão de vontades reprimidas
Somos um arremedo do que vocês sonharam
Entretanto, somos imprevisíveis, lembremos da lição do poeta.

IV
“Ó, amigos, mudemos de tom!
Entoemos algo mais prazeroso
E mais alegre!”
Sejamos todos um só nas nossas solidões
Sejamos todos naqueles que lutam a luta diária por nós
Sejamos um nesse tempo de distâncias e desinteresses
Sejamos sociedade e união pelas dores de múltiplas perdas
Somos bem mais do que aquilo que não esquecemos de sonhar
Somos mais do que uma distração dos deuses.

V
Somos amizade, família e discernimento
Somos quintais acolhedores repletos de parentes que não conhecemos
Somos casas em que a porta está sempre aberta
Somos a taça quase vazia que ainda brinda
Somos o peixe que se multiplica por força dos apetites moderados
Somos o que quisermos juntos, somos multidão, 
Sejamos um e muitos, sejamos juntos, sejamos união, porque
“Ela nos deu beijos e vinho e
Um amigo leal até a morte”.

VI
Somos muito, mas estamos cansados de estar desconfiados
De nós mesmos, de nossos amigos, da limpeza de nossa higiene
Somos turbilhão, somos repressão de dentro para dentro
De fora para dentro, de fora para fora
Somos falsos messias, falsos profetas, falsos falsificadores
Somos falsificáveis, somos farsas, somos o álcool que infecta
Somos tudo aquilo que repudiamos e também aquilo que sonhamos
Somos inclusive tudo que poetas e filósofos nos avisaram para não sermos
Somos o cotidiano que atropela a beleza e a fraternidade.

VII
Somos guerras, fome, crime e doença
Somos tudo que falamos de nós mesmos
Somos o velho que morre sozinho e sem cuidados
Somos frascos fracos e quebradiços de um remédio ainda por vir
Somos máscaras pobres e vermelhas brindando com champagne
Resumimos bem os horrores que a arte gritou e redimiu
Somos tudo que a cegueira feita de pestes impôs
Somos o ensaio de um último homem andando sozinho e quase morto
Somos a dança da morte, somos vaidade que contagia.

VIII
No ano da peste, somos noivos do que nos falta
Neste ano, como em alguns outros, aprenderemos duramente pelo exemplo
Ensaiaremos virtudes, seremos o que não fomos
Brindaremos com mais gozo, leremos com mais desespero
Na iminência da morte que macabra e vendada escolhe a esmo
Seremos tributo, oferenda e presente; desprezo e admiração
Seremos furacão dentro de nós mesmos; convulsão barbaramente civilizada
Seremos as vibrações de um terremoto novo, menos sombrio, previsível
Seremos revolução em alma nem tão pequena, nem tão devota.

IX
Será um novo tempo com novas dores e novas alegrias
Será tudo novo, se não, nada valerá nada
Por isso, meus irmãos e irmãs, guardem bem guardados abraços e beijos
Haverá muito trabalho para eles nos dois lados do rio
Deverá haver amor para os que morrem, para os que insistem e para o barqueiro
Guardem os brindes para o que há por vir de bonito e de falta, não será nada igual,
mas será, e é nessas ruínas prósperas que faremos nossa festa possível, enfim:
“Abracem-se milhões!
Enviem este beijo para todo o mundo!”

VS
22/03/2020

Observação: os trechos entre aspas são do poema “Ode à vida” de Friedrich Schiller escrito em 1785 e usado na obra maior de Ludwig van Beethoven: “A Sinfonia Nº. 9” (1824).

Intervenção literária, um manifesto poético



Por um mundo com mais literatura e menos tortura
Uni-vos tal como as palavras que juntas parem arte
Elos de uma corrente feita de versos que se unem em desarmônica harmonia.

Por um mundo de mais anti-heróis, menos heróis e mais vilões cômicos
Por menos enredos óbvios e com emoções requentadas
Por um mundo literário com menos super poderes e mais fraquezas gloriosas e melancolicamente humanas.

Por mais romances tortos com finais dúbios que confundem os corações e mentes dos leitores mais convictos
Precisamos de mais carinho com a confusão, com o mundo incerto e quebrado que herdamos
Precisamos nos fundir em sociedades literárias
Precisamos nos proteger do frio desses tempos com o cobertor certo e morno dos livros
Precisamos de menos fotos e de mais tinta
Precisamos de menos áudios e emojis e gifs e abreviações
Precisamos de mais abraços e brindes reanimados
Precisamos de mais poemas precisos como um beijo
Precisamos mais de bibliotecas e livrarias do que de altares e de halteres. 

VS


Medo coletivo

“Nada inspira mais coragem ao medroso do que o medo alheio.” 
(Umberto Eco)

Onde há medo coletivo, há ruidosa resistência, há diversas ruínas, 
há divergências,
há navios prontos para zarpar sem velas,
há densa e invencível ruína da fé, da razão, ou dos dois,
há medo nos medos represados em sacadas,
há medo até nos bichos - medo de nós,
há medo compreensível do invisível,
há medo dos abraços que guardamos,
há deuses medrosos animados em domar mentes,
há escuridão sombria, profunda e tola infectando um mundo com medo,
há medo na ambiguidade sobre o que deveria ser claro como o bem e o bom,
há um oceano de pontos finais no mar de medos reticenciais que há em nós.

VS

domingo, 8 de setembro de 2019

Mãe

Para Nair e Camila, 
com amor e gratidão

Mãe é ponto que virou linha
É ninho do qual se parte
É arte de ser parte e ser todo
É colo que não se espera
É era que nasce todo dia
É cria de outro ponto
que se alinha ao novelo
da eternidade. (VS)

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Pequeno dicionário de enormes substantivos (em construção)



A
Aniversário (s.m.) - data irônica que celebra a vida de alguém que está mais próximo da insondável e implacável morte.

Apocalipse (s.m.) - ideia de fim cuidadosamente imaginada ou concebida por cada uma das gerações de seres humanos que já viveram, que revela sempre os maiores defeitos de cada uma delas e que nunca chega.


B
Beleza (s.f.) - maldição que todos desejam.

Brasil (s.m.) - país em que KKK é apenas uma risada falsa feita de elétrons.

C
Céu (s.m.) - lugar desejado e cultuado que absolutamente ninguém quer chegar cedo.

Conhecimento (s.m.) - único produto do engenho humano que é norte, porto e perdição ao mesmo tempo.

Criança (s.m.) - ainda não adulto submetido pela barbárie dos instintos e dos desejos potencializados pela omissão de crianças grandes.

D
Deus (s.m.) - medo primal do vazio monumental de não crer em nada.

Demônio (s.m.) - entidade multidimensional inventada pelo homem que jamais iria na casa comum ou invadiria a vida enfadonha da absoluta maioria das pessoas. Acreditar que um (o) demônio pode de fato se interessar por você, logo você, é o exemplo definitivo da mais incontornável megalomania.

Dinheiro (s.m.) - recurso bastante útil, que é ótimo quando é muito, mas é sempre pouco.

E
Estudante (s.m.) – aquele que, inconformado, investiga o mundo para saber o tamanho sempre infinito de suas ignorâncias, por isso é feito da matéria mais dura que pode se encontrar na natureza humana: a coragem de olhar lá no fundo de si mesmo para ver um copo sempre pouco mais do que vazio, o qual bravamente o estudante tenta encher com o conta-gotas sempre anêmico do conhecimento.

Estudo (s.m.) – ato corajoso e pouco produtivo que faz seus adeptos verem-se como grandes enquanto o que estudam os vê microscópicos.


F
Filho (s.m.) – continuidade sempre amorosa dos pais mesmo quando não há amor.

Fundamentalismo (s.m.) - processo pelo qual um indivíduo deixa de lado ideias ruins para crer de forma inabalável em ideias ainda piores. 

H
Homem (s.m.) - espécie comum de macaco que envergonha cada um dos membro da sua grande família.

Humor (s.m.) - forma mais elevada de inteligência e único caminho para a salvação moral da humanidade.

I
Inferno (s.m.) - especulação geográfica e literária - certeza mítica e religiosa - para a qual todos têm uma certeza tímida e envergonhada de que irão.

L
Literatura (s.m.) – arte ou vontade de ser mais do que ontem por meio de sentimentos e motivos quase sempre bem piores do que o resultado dos esforços, sobretudo, dos melhores autores.

Livro (s.m.) - o mais importante objeto criado pelo homem. Um caso raro de filho que dá vida ao pai. Deuses que o homem criou.

Loucura (s.f.) - forma muita lúcida de negação do pior que há na vida. Uma forma de cura que não cura nada, nem o louco, nem a vida.


M
Morte (s.f.) – força imaterial, implacável e imprevisível que faz tudo na vida ser urgente. 

N
Natal (s.m.) - oportunidade anual e amplamente explorada pela maioria dos cristãos de serem profanos em dia santo.

Noite (s.m.) - dia que ficou envergonhado e que se escondeu atrás de suas vergonhas. 

P
Pai (s.m.) – aquele que ama mesmo quando ausente, que ama mesmo quando repreende, que ama mesmo solitário em sua caverna de homem, que ama na imensidão aguda de sua dureza.

Paródia (s.m.) – espécie de carnaval feito de cinzas ou carnavalização da vida. Riso farto do depressivo.

Passado (s.m.) - tudo aquilo que tornou-se memória quase sempre inventada.


R
Racista (s.m.) - pessoa com permanentes ideações suicidas convertidas em impulsos genocidas contra o outro que é sua imagem e semelhança.


T
Tolerância (s.m.) – ato de coexistir civilizadamente com o diferente e de não matar o intolerante. 

Tempo(s.m.) – presente que a eternidade dá, mas que a finitude tira.


V
Vida (s.f.) – força material, prenha de possibilidades e quase previsível que move o mundo, embora seja ignorada pelo que moveu como se não fosse nada. A vida é o nada que cria tudo.


Nota do lexicógrafo amador e poeta Vitório Sá: este dicionário está em eterna construção e como a vida muda, os verbetes podem ser alterados sem prévio aviso ou qualquer comunicação posterior.

domingo, 27 de maio de 2018

Santo que não cola

"Agora não pergunto mais pra onde vai a estrada

Agora não espero mais aquela madrugada
Vai ser, vai ser, vai ter de ser, vai ser faca amolada
O brilho cego de paixão e fé, faca amolada"
(Milton Nascimento, "Fé cega, faca amolada")

Dia desses, um santo 
Quebrou
Por dentro

Foi triste
Porque não há como colar 
aquilo que se rompe do interior profundo e insondável de suas próprias entranhas. 

VS

Levanta

"O artista é a antena da raça." (Ezra Pound)
Esse aforismo foi a frase que mais ouvi vinda da mente visceral e tortamente literária de meu amigo irmão Bruno Curcino, um eterno e rabugento humanista, a quem dedico este poema e busco inspiração para acordar amanhã e levantar esperançoso, ativo e forte.

Ontem é mais hoje do que imaginamos
Mais humanos? Quanta raiva reciclamos?
O que parecia muito é cobertor infantil no corpo adulto e cativo do frio
O mundo é mesmo um moinho como dizia o mestre que entendia que cada um precisa se encontrar
Estamos perdidos com um saco de bússolas nas nossas costas cansadas
É fato, mais do que gostaria de admitir no meu humanismo tonto e frouxo
O mundo dá voltas e passa pelos mesmos lugares, sobretudo, os sombrios
É um rio que forma um círculo feito de nós
Faz parecer finito e acabado o tudo, mas nessa hora
A poesia salva, a poesia cura, a arte levanta.

VS

domingo, 15 de abril de 2018

Época de guerra

Na guerra 
só há honra
quando não há guerra.

Na guerra
só há silêncio
quando não há dor.

Na guerra
só há céu
quando não há fogo brilhando nele.

Na guerra
só há beleza
quando ela não começa.

Na guerra
só há paz
quando se pacifica a
humanidade
que há nos homens.

VS

quarta-feira, 11 de abril de 2018

Sozinho

Sou ponto final sem frase para dar cabo
Sou navio de museu com sede de mar
Sou disco sem agulha para me fazer falar
Sou bússola procurando um ermo impossível
Sou risco sem medo para me assombrar
Sou verso sem beleza para cantar.

VS

Dois

Para Camila.

Mais do que um
Mais do que só
Mais do que apenas
Mais do que ontem
Mais do que somente

Eram dois
Eram muitos dentro da casca
Eram ermos
Eram atropelos
Eram críveis

Juntos, eram um
Juntos, eram únicos
Juntos, eram todos
Juntos, eram irremediavelmente mais do que sonhariam quando estavam sós, eram nós, eram laços, eram desembaraços, eram aço.

VS 

Resistência

Na guerra, perdoar.
No amor, ignorar.
Na dor, dividir.
Na alegria, somar.
Na doença, esperar.
Na pobreza, partilhar.
No silêncio, cantar.
Na solidão, deixar.
Na opressão, pensar.
Na ditadura, agrupar.

No final, gargalhar.

VS

Pedagogia

Numa tarde de sábado dessas meio tépidas, trabalhava nas aulas da próxima semana, enquanto minha filha menor brincava de ser professora no mesmo cômodo em que eu estava. Ela era professora das suas muitas bonecas, todas silenciosas e aparentemente calmas enquanto a professora severa como poucas repreendia as bonecas sobre estarem em pé na sala, sobre quererem ir ao banheiro, sobre conversarem... Quando sugeri a ela que seria melhor tratar do assunto da aula, que, assim, os alunos poderiam sentir-se interessados e deixariam naturalmente de lado os comportamentos que ela não achava adequados. Foi quando ela respondeu que já estava dando aula. 

Um buraco surgiu no centro fundo dentro do peito do professor.

VS

quarta-feira, 26 de julho de 2017

Abismo


Monte de nada ao inverso
Coisa ampla na sua finitude
Salto de paraquedas ao reverso
Segurança do inseguro, do hesitante, do tépido
Trapézio fantasiado de triângulo
Círculo que não protege
Absinto sem culpa
Vertigem e tontura num mesmo salto.

VS

quarta-feira, 5 de julho de 2017

Sobre a matéria do tempo

Ontem, tarde ainda era cedo.
É denotativo o verso acima,
o tempo que é conotativo.
Tempo é poesia.

VS

segunda-feira, 3 de julho de 2017

II - Num mundo de imposições, peço

_Posso ficar sentado quando for imprescindível estar em pé? Não é por desdém ou algo assim, é que estar em pé me causa náuseas, porque estive de joelhos uma vida inteira. 
_Estar sentado é a primeira etapa da minha recuperação. - respondeu o professor.

VS

I - Num mundo de imposições, peço


_ Um café, por favor, sem açúcar e com afeto.

VS

Todo caos


Todo caos é o avesso de todo cais.
É um abraço fraterno e amável de satanás.
É ilha cercada de ilhas e distâncias.
É porto sem navio, sem rio e sem mar.
É toureiro sem brio.
É a medida do que não traz
nem frio, nem calor, nem nada mais.
É confusão, é desilusão previsível e inexorável.
É estar passado no presente.
É nadar num loop eterno e estático.
É colossal como um vácuo de vazios
num caos feito de luzes e silêncios e letras e mensagens entre dois amores separados pelos seus telefones.

VS                    

Dia desses

“A loucura (...), objeto de meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente.” 
(Simão Bacamarte, “O Alienista”, Machado de Assis)

Ainda faço uma loucura
e fico normal.

VS

Sobre a necessidade de poesia nos trópicos - Opus tropicalis II

“O ato de entender é vida.”
(Aristóteles)

Em tempos denotativos, poesia é sustento
para o que não tem preço, nem custo
Em tempos sombrios, poesia é trópico
quente e fraterno esperando o encontro e o beijo
Em tempos prosaicos, poesia é o extraordinário
vento que leva adiante asas de homens feitos de concreto, dor e medo.

VS

domingo, 2 de julho de 2017

Sobre a necessidade de poesia nos trópicos - Opus tropicalis I


Poesia é tão necessária quanto o alimento
Quanto o pão para o homem
Quanto a farinha para o pão
Quanto o trigo para a farinha
Quanto a semente para o trigo
Quanto a natureza para a semente
Quanto o homem para a vida quantificada

Quanto?

Quanto pão.

VS